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sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Água Parada

Ivan Nery Cardoso

Engata a primeira. Abaixa o freio. Anda. Para. Puxa o freio.

O céu é de um azul imaculado, imenso, impiedoso. Não chove há semanas, e a secura já se percebe nos lábios rachados pela cidade, um grave incômodo. O ar parece de um amarelo sujo, esconde o perfil dos prédios mais distantes. O sol, lá em cima, brilha um pouco demais, tornando o dia quente -muito quente- e isso significa uma coisa apenas: o rio, que corta a cidade em duas fatias desiguais, vai estar cheirando mais do que o normal. As águas paradas de seu curso artificialmente retilíneo fervem sob o calor abrasante, exalando um refinado aroma pungente que atravessa as barreiras físicas dos vidros escuros, vence as atmosferas postiças de gleid autoesporte e se faz sentido pelas muitas narinas que já o conhecem bem: carniça fermentada, com notas de enxofre.

Engata a primeira. Abaixa o freio. Anda. Para. Puxa o freio.

Filha da puta, sacana de merda! Vai fechar a puta que te pariu! Tá querendo o que entrando assim, porra? Ô seu bosta, enfia essa buzina no teu cu, caralho! Não tá vendo que essa merda não tá andando pra ninguém, escroto? Tá achando que essa caceta vai fazer meu carro voar? Ah, te foder! Calor do caralho! Olha aí, já tô todo cagado de suor!

Engata a primeira. Abaixa o freio. Anda. Para. Puxa o freio.

As motos passam despreocupadas nos corredores vazios, desviando dos retrovisores emparelhados, os rostos escondidos por capacetes. Os ônibus resfolegam como grandes paquidermes, movem-se pesados, a passos curtos. Nas traseiras dos carros, mensagens aos colegas estacionários: “Tá estressado? Vá surfar”, diz o Corsa sedan. “Foi deus quem me deu”, se orgulha o Gol 1.4. “Me lave”, clama o encardido Celta branco na poeira que o limpador de parabrisas não alcança. Uma família adesiva sorri a todos: mãe, pai, dois filhos e um cachorro, nenhum deles afetado pelo estresse. Devem ser surfistas.

Engata a primeira. Abaixa o freio. Anda. Para. Puxa o freio.

Devia deixar um desodorante no carro, talvez no porta-luvas, é só tirar os cds de lá, colocar num daqueles estojos que cabem uns 50, aí dá pra deixar na porta, fica até mais fácil de pegar, será que ainda vendem esses estojos, ninguém usa cd mais, caramba, que música chata, não tem nada de bom no rádio a essa hora, vontade de ouvir Lou Reed, cadê o cd, cadê, cadê, achei bob marley, faz tempo que não escuto, old pirates, yes they rob I, sold I to the merchant ship, será que passa barco no rio hoje em dia, quer dizer, além dos que tentam limpar essa água podre, cheia de lixo, espuma flutuando, olha lá quanta garrafa de plástico boiando, como é que meu avô conseguia nadar aí quando era jovem, bom, naquela época o rio era outro, a água era limpa, tinha margem natural, tinha árvore, não tinha essas avenidas, quem veio primeiro, a avenida ou a poluição?

Engata a primeira. Abaixa o freio. Anda. Para. Puxa o freio.

Os motores tremem, ansiosos para correr, gritar, ranger; reflexo desses motoristas enclausurados, do rádio ligado, dos sovacos molhados. De dentro de um ônibus vermelho, a cabeça de um motorista espia para fora da janela o retrovisor lateral, enquadrando o rosto no reflexo: primeiro o lado direito, depois o esquerdo. Ajeita as sobrancelhas grossas com o dedo médio e com um único mindinho alisa a superfície do nariz, analisa a textura da pele, como se à procura de evidências de um cravo ou uma espinha já espremidos. Coloca os óculos seguros por um cordão no pescoço e se observa mais atentamente. Olha os dentes, tenta tirar algo com a língua, alisa os cabelos que crescem apenas nas laterais, começa a pentear para os lados os fios espessos do bigode com o polegar e o indicador, mas o ronco das motos e dos carros se acentua mais uma vez, anunciando a iminência do movimento, o trânsito que anda.

Engata a primeira, abaixa o freio, e volta a desaparecer detrás de seu volante.

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