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segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Serelepe

Daniel Frazão

O trombadinha atravessou a avenida na faixa de pedestres, todo serelepe, com as mãos prestes a mais um assalto. Parecia um saci sem cachimbo na boca ou perna amputada. Tinha apenas um cachecol vermelho para proteger o pescoço do frio daquela manhã de terça-feira, uma roupa suja no corpo e um sorriso na cara como se seu ilícito fosse quase uma dádiva.

Acompanhei tudo pelo para-brisas, parado no farol a poucos metros da cena. O saci se aproximou de um táxi e interpelou o taxista com uma risada e um chiste antes de mostrar o canivete que guardava sob o elástico de uma calça de moletom desbotada. Pediu toda a féria que o motorista acumulara entre o final da madrugada e o início da manhã.

O taxista, por um momento, hesitou em dar o dinheiro, com a esperança de que o farol verde pudesse salvá-lo, assim como a coragem de dar um cavalo de pau com o carro e deixar o trombadinha falando sozinho. Mas o saci talvez tivesse dons que só conhecíamos nas histórias que nossas avós contavam e parecia até controlar as fases do semáforo, como um guarda da CET.

Cientes ou não do que ocorria a poucos metros de seus respectivos narizes, os outros motoristas buzinavam, mais em protesto pela demora do farol do que pelo cu doce do taxista ou pela insolência do meliante. Eu, ao contrário dos outros, observava o assalto com toda a paciência. Torcia para que o bandido se desse bem.

Eu tinha acordado de ovo virado e queria que o resto do mundo se fodesse – e isso incluía o taxista que eu sequer conhecia. Além disso, a bem-aventurança do assalto seria uma vitória do trombadinha em sua causa: roubar dos outros em beneficio próprio, sem distinção de raça, credo, sexo ou filiação política. E sempre admirei esse tipo de engajamento.

Tive dó do taxista por alguns instantes, não vou negar, pela hipótese de perder tanto dinheiro num estalar de dedos, mas logo me conformei e percebi que essas coisas fazem parte da vida e que eu poderia ter dado a falta de sorte de estar em seu lugar de vítima. Bastava ter parado o carro um pouco mais à frente, na primeira fileira depois da faixa de pedestres.

A hesitação do taxista, por sua vez, poderia ter feito o saci meter os pés pelas mãos e cumprir a ameaça que existia na lâmina do canivete. Em uma situação comum, a polícia poderia chegar a qualquer momento para interromper o crime e colocar o meliante como um bicho no camburão. Mas apesar de corriqueira, aquela não era uma situação comum. O trombadinha parecia deter o tempo com um feitiço.

E como num passe de mágica, o taxista enfim resolveu se desfazer da grana. Tirou um bolo de dinheiro não se sabe de onde e o entregou ao trombadinha enquanto os carros da avenida transversal insistiam em passar de forma ininterrupta à sua frente. Ávido diante daquele tesouro, em notas gordas, médias e magras, o saci abriu um leque com as cédulas em suas mãos céleres, com dotes de crupiê.

Ao completar o assalto, o trombadinha voltou a correr no sentido oposto de onde viera e se escafedeu em alguma rua por dentro do bairro. O taxista respirou fundo com um sentimento de redenção por sair vivo, o farol abriu e ele acelerou em busca de outros passageiros que o ajudassem a, pelo menos, diminuir o prejuízo com o roubo. E eu continuei o caminho para o trabalho, enfrentando o mau humor e a barbeiragem alheia.

terça-feira, 10 de novembro de 2015

Skyline Pigeon

Zulmira Carvalheiro

              Há algumas coisas nesta vida que não entendo.
Vivo aqui nesta casa desde sempre, todos me tratam bem, me trazem brinquedos, brincam comigo e contam histórias. Mas sou proibida de passear sozinha. Há sempre alguém segurando a minha mão quando estamos lá fora. Não posso nem correr atrás das pombinhas, nem subir em árvores, nem nada. Apanhar flores e catar pedrinhas com as duas mãos também é impossível.
Uma noite, quando todos estavam dormindo, tentei sair por uma das janelas. Então percebi: todas têm grades de ferro.
Uma única vez fomos até o limite do jardim, isso depois de eu pedir muito. Só concordaram quando perceberam lágrimas nos meus olhos. Fiquei admirada com a altura do muro. "Para que um muro tão alto?" perguntei. Nenhuma resposta.
Há algum tempo comecei a ter vontade de sair daqui. Eles afirmam que nada existe para além do jardim, mas acho difícil acreditar.
Hoje tentei largar a mão do meu acompanhante. Ele percebeu na hora e segurou mais forte ainda, chegou a doer. Voltamos logo para dentro.
Quando eu era mais jovem não pensava nessas coisas, porém agora vivo atormentada por dúvidas e curiosidades que nunca são esclarecidas.
              Meu desejo é voar para longe daqui. Se pudesse iria agora mesmo. Isso me lembra um dos grandes mistérios que me cercam: por que as outras pessoas não têm asas?

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Água Parada

Ivan Nery Cardoso

Engata a primeira. Abaixa o freio. Anda. Para. Puxa o freio.

O céu é de um azul imaculado, imenso, impiedoso. Não chove há semanas, e a secura já se percebe nos lábios rachados pela cidade, um grave incômodo. O ar parece de um amarelo sujo, esconde o perfil dos prédios mais distantes. O sol, lá em cima, brilha um pouco demais, tornando o dia quente -muito quente- e isso significa uma coisa apenas: o rio, que corta a cidade em duas fatias desiguais, vai estar cheirando mais do que o normal. As águas paradas de seu curso artificialmente retilíneo fervem sob o calor abrasante, exalando um refinado aroma pungente que atravessa as barreiras físicas dos vidros escuros, vence as atmosferas postiças de gleid autoesporte e se faz sentido pelas muitas narinas que já o conhecem bem: carniça fermentada, com notas de enxofre.

Engata a primeira. Abaixa o freio. Anda. Para. Puxa o freio.

Filha da puta, sacana de merda! Vai fechar a puta que te pariu! Tá querendo o que entrando assim, porra? Ô seu bosta, enfia essa buzina no teu cu, caralho! Não tá vendo que essa merda não tá andando pra ninguém, escroto? Tá achando que essa caceta vai fazer meu carro voar? Ah, te foder! Calor do caralho! Olha aí, já tô todo cagado de suor!

Engata a primeira. Abaixa o freio. Anda. Para. Puxa o freio.

As motos passam despreocupadas nos corredores vazios, desviando dos retrovisores emparelhados, os rostos escondidos por capacetes. Os ônibus resfolegam como grandes paquidermes, movem-se pesados, a passos curtos. Nas traseiras dos carros, mensagens aos colegas estacionários: “Tá estressado? Vá surfar”, diz o Corsa sedan. “Foi deus quem me deu”, se orgulha o Gol 1.4. “Me lave”, clama o encardido Celta branco na poeira que o limpador de parabrisas não alcança. Uma família adesiva sorri a todos: mãe, pai, dois filhos e um cachorro, nenhum deles afetado pelo estresse. Devem ser surfistas.

Engata a primeira. Abaixa o freio. Anda. Para. Puxa o freio.

Devia deixar um desodorante no carro, talvez no porta-luvas, é só tirar os cds de lá, colocar num daqueles estojos que cabem uns 50, aí dá pra deixar na porta, fica até mais fácil de pegar, será que ainda vendem esses estojos, ninguém usa cd mais, caramba, que música chata, não tem nada de bom no rádio a essa hora, vontade de ouvir Lou Reed, cadê o cd, cadê, cadê, achei bob marley, faz tempo que não escuto, old pirates, yes they rob I, sold I to the merchant ship, será que passa barco no rio hoje em dia, quer dizer, além dos que tentam limpar essa água podre, cheia de lixo, espuma flutuando, olha lá quanta garrafa de plástico boiando, como é que meu avô conseguia nadar aí quando era jovem, bom, naquela época o rio era outro, a água era limpa, tinha margem natural, tinha árvore, não tinha essas avenidas, quem veio primeiro, a avenida ou a poluição?

Engata a primeira. Abaixa o freio. Anda. Para. Puxa o freio.

Os motores tremem, ansiosos para correr, gritar, ranger; reflexo desses motoristas enclausurados, do rádio ligado, dos sovacos molhados. De dentro de um ônibus vermelho, a cabeça de um motorista espia para fora da janela o retrovisor lateral, enquadrando o rosto no reflexo: primeiro o lado direito, depois o esquerdo. Ajeita as sobrancelhas grossas com o dedo médio e com um único mindinho alisa a superfície do nariz, analisa a textura da pele, como se à procura de evidências de um cravo ou uma espinha já espremidos. Coloca os óculos seguros por um cordão no pescoço e se observa mais atentamente. Olha os dentes, tenta tirar algo com a língua, alisa os cabelos que crescem apenas nas laterais, começa a pentear para os lados os fios espessos do bigode com o polegar e o indicador, mas o ronco das motos e dos carros se acentua mais uma vez, anunciando a iminência do movimento, o trânsito que anda.

Engata a primeira, abaixa o freio, e volta a desaparecer detrás de seu volante.

Casa de Espelhos

Ivan Nery Cardoso

À direita o Biólogo me observa,
a barba negra coçando,
escrutinando o estranho símio
que do outro lado o imita.

À esquerda o Escritor me contempla:
rapaz alto, olhos baixos, cabelos curtos.
Dançando a caneta no caderno,
toma notas para um conto.

Às minhas costas uma Criança, tímida,
por cima dos ombros me espia.
Mão na mãe segura, segura.
Tem medo, ainda não me conhece.

À minha frente me olha um Adulto nos olhos:
Sério, responsável, maduro.
Tenta entender onde veio parar
e o que significam tais palavras.

Por trás de cada um enxergo
mais um e mais um e mais outro ainda.
Cada um, uma parte do todo que
os pergunta de volta: quem sou eu?

Fotógrafo na estação

Ivan Nery Cardoso

Mil e tantas cabeças,
mil e tantas camisas,
mil e tantas calças,
mil e tantos umbigos.
Dois mil e tantos olhos,
dois mil e tantos pés,
duas mil e tantas narinas,
duas mil e tantas mãos.
Sete mil e tantos botões,
dez mil e tantos dedos,
vinte mil e tantos se contarmos os
dois mil e tantos pés.
Setenta mil e tantas batidas por minuto.
Duzentos mil e tantos ossos.
Um milhão e tantos fios de cabelo.
Vinte e cinco trilhões e tantos neurônios.
E apenas uma cabeça, uma camisa,
uma calça, um umbigo,
dois olhos, dois pés,
duas narinas, duas mãos,
sete botões, vinte dedos,
setenta batidas por minuto,
duzentos ossos, mil fios de cabelo
e vinte e cinco bilhões de neurônios,
pararam para observar
essas mil e tantas vidas
que estão a passar.

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Autorretrato

Auler José Matias

Exposição perfeita,
Ilumina em flash certeiro,
Imagem fugaz, rarefeita,
Foto do eu verdadeiro.

Opaca, difusa
Em abertura que não se usa
Clicada na exata distância  
Captura apenas a fragrância,
Da face oculta,
Em resolução que não resulta.

Negativo revelado revela, reveladora
Imagem sedutora
Da esfinge
Que engana e finge
Ser um ou outro
Ou vários ou poucos
Nem neste, nem noutro,
O “baguio” é muito louco.

Não me sei, não me encontro,
Só sei que ainda não estou pronto
Para o post final,
Em rede social,
Digitalizado, sine qua non,

Nas lentes da câmera Cânon.

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Fim de Tarde

Alessandra Correa

Sem precisar olhar o relógio, percebi que o dia estava terminando. Logo o sol se poria, e chegaria a hora de os levar para casa. E a costumeira cena se daria: carregaria a pequena no colo, sonolenta, cabelos sob o rosto. Já Pedro, passaria pela porta correndo, cheio de areia e histórias, com uma energia que sempre me deixava surpreso. Quando estivesse lá dentro, me daria um tchau, gritado, quase esquecido. E então, eu voltaria para o carro. Sozinho.

Mas ainda tínhamos algum tempo. E assim, mascarei o que me apavorava e fiquei ali, sentado, apenas os observando brincar.
Eles não tinham pressa. Não pensavam no depois. Não se preocupavam. Apenas estavam ali. Correndo pela orla, empurrando um ao outro, molhando os pés na água gelada, acenando de vez em quando.

De onde estava, podia ouvir os gritinhos e risadas, misturados ao quebrar das ondas. Mas não conseguia enxergá-los claramente. Nem era preciso. Sabia que estavam com as faces coradas, olhos brilhando, coração leve. Naquele momento, isso era tudo o que eu tinha. Um fim de tarde. Tudo o que me bastava.

Cena de foco aberto

Mariana Salomão Carrara

Quando permito que os delírios dela provoquem sigilosos princípios de conjecturas em mim, fica a imagem absurda: eu com parafernálias de bebê, e um bebê, chegando de volta da maternidade ao apartamentinho avermelhado e infestado de poeira, figurinos, uísques e artistas – rapidamente substituídos e afastados por parentes cheios de autoridade –, um bebê ali parado embrulhado no meu braço, num dia totalmente irreversível como nenhum outro, o bebê reordenando as prioridades e subitamente transformando qualquer vocação ou arte em supérfluo, o bebê no braço pesando cada vez mais, até que não caiba no berço, nem caiba na minha vida, onde nunca de fato teria cabido, uma pessoa que eu teria posto no mundo e que pouco a pouco poderia fazer cada vez menos sentido. Alguém, na pior das hipóteses um homem, que nada tem a ver comigo e de quem eu não posso me separar jamais. Um outro homem que talvez por freudialidades revoltantes tenha se formado ao avesso de mim e se sente à minha mesa com a barba  impecável exercendo suas boçalidades tipicamente masculinas, repletas de uma heterossexualidade das mais triviais, apresentando mulheres conformadas e plácidas com quem o meu convívio começa a ser permanente. Circularia em casal pela minha sala exercendo sua jovialidade plástica, exibindo músculos que eu nunca tive, julgando-se ele próprio o retrato de uma nostalgia que eu terminantemente não teria. Tentativas inócuas de me magoar com a minha velhice enquanto na verdade me enoja com a sua juventude de banalidades, escancarando ao mundo que não pode haver nada de especial em mim se o que eu pude gerar é um cuspe amorfo da mediocridade, ele ali feito um espelho eterno que eu passaria a vida tentando negar. 

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

No Quarto

Michelle Potapovas Conte 

Aquele cubículo escuro e abafado, banhado apenas pela luz laranja do abajur de pedra em cima de mesinha, a garota mais indefinível do mundo está a escrever e refletir, sobre a vida, os planetas, as profissões e principalmente, as dúvidas mais estranhas que alguém pode ter a respeito de nossa existência na Terra. Ajeita o lápis na mão novamente e continua a escrita lenta e pesada. E em meio a tantas cobranças e questionamentos, ela mais uma vez nessa semana se sente presa em seu próprio quarto, não apenas por ele ser minúsculo, mas por se sentir presa também a um corpo que não lhe corresponde. Ela deixa o caderno e o lápis sobre a cama onde estava sentada e levanta-se, abre a janela em busca de ajuda, para que um pouco de ar possa inundar aquele aperto dentro do quarto e dentro do peito. 

Missão Espacial: Exoplaneta

Zulmira Carvalheiro
         


           Aqui vou eu, caminhando sem rumo pela superfície mais inóspita do universo conhecido. Saí sozinha a fim de contemplar essa aurora boreal amarela, prova de que o núcleo do planeta continua ativo. Aí está a magnestosfera para protegê-lo. Muito fraca, porém. A incidência de raios cósmicos é intensa. Ambiente perigoso para a vida humana. Por que fui me afastar da base? Nem percebi o quanto me afastava. Todos aqueles anos de capacitação e agora quebro o procedimento mais elementar de segurança. Se me perder nem saberão onde me encontrar porque esqueci o anel localizador no alojamento. O que acontece comigo, a funcionária padrão do projeto? 
          Se me deitar aqui, ao lado dessa rocha e ficar bem quieta... O oxigênio dos cilindros se esgotando lentamente... Meu sistema saturando-se com dióxido de carbono... vou ficar com sono, vou dormir...  
          Foco! Foco! Qual o motivo dessa cor na aurora boreal? Átomos de sódio na ionosfera? O solo é vermelho de ferrugem, como em Marte. Mas o brilho amarelo no horizonte me lembra luz de sódio. Preciso perguntar a alguém quando voltar à base. Não posso demorar. Tanta aridez me deprime. Um planeta inteiro sem vida vegetal. Nenhuma árvore, nenhuma flor. 
          Um planeta sem flor deve morrer mesmo. Merece ser vaporizado por uma estrela em explosão. De que vale a vida sem flores? Mesmo as insignificantes, como aquelas violetas pequeninas que se abrem escondidas no meio da folhagem. Uma única flor que houvesse aqui justificaria a permanência do planeta. Mas não há. Que se aniquile junto com sua estrela agonizante. Nada a lamentar.

* * *

(Este é um trecho adaptado do conto "Exobacterjulian".)


sábado, 10 de outubro de 2015

Espera

Zulmira Carvalheiro

Parado aqui na porta do meu rancho, fitando a imensidão do céu, tenho visto o mundo se transformar. 
Sentei nesta soleira há muito tempo e nunca mais levantei. A não ser uma vez, quando peguei doença e me carregaram para dentro. Mas depois voltei e aqui estou como sempre, espiando a estradinha de terra.
Enquanto isso, o sol nasce, o sol se põe, e tudo vai mudando. 
Os morros eram verdes de tanta árvore. Aí derrubaram tudo. O verde sumiu. Só se via a terra e a poeira que o vento esparramava. 
O tempo passou, a terra verdejou outra vez. Mas não é como antes, só cresceu mato rasteiro. 
O riacho também modificou. A água, de clarinha que era, escureceu.  Agora nem enxergo mais a correnteza, deve ter secado tudo.
Quando os morros eram verdes e as águas eram claras, tinha bastante gente morando por aqui. Disso me recordo bem. 
Então veio aquele dia. Cheguei do eito e estranhei a porta aberta. Tudo escuro lá dentro. Saí procurando ela, mas ela não estava em lugar nenhum. Me disseram que tinha ido embora de manhã cedo, carregando a mala. Enveredou pela estradinha e desapareceu sem falar com ninguém.
Duvidei, fui pra casa e encontrei o guarda-roupa vazio. Era verdade, ela tinha fugido. O motivo, levou junto com ela.  
Vim aqui e sentei na soleira, esperando ela voltar. 
As pessoas chegavam e me diziam pra entrar pra dentro, que estava de noite, fazia frio e eu ia perder a pouca saúde que tinha. Me traziam comida, sentavam do meu lado e me obrigavam a comer pelo menos um pouco. Até cobertor arrumavam pra me cobrir, porque entrar eu não entrava. 
Aí fiquei doente. Eles me pegaram e me puseram na cama.
Esqueci o que aconteceu. Só sei que voltei pra cá e ninguém tornou a falar comigo. Passavam reto na estrada sem virar a cabeça nesta direção. 
Não fiz conta, prefiro estar sozinho. Acostumei. Nunca mais senti frio nem fome nem sede.
Sumiu o arvoredo dos morros, o riacho secou, e todo o povo foi pra longe. 
Só restou eu aqui, sem outra labuta além de olhar o sol nascer e o sol morrer.
Um dia, quando ela apontar na curva logo ali depois da cerca, vai me ver neste mesmo lugar, esperando. 
Vai ficar bem contente, que eu sei. E vai apertar o passo, com vontade de me abraçar.

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Teia

Mariana Salomão Carrara

            Por um tempo uma aranha viveu num canto do teto do nosso quarto. Não era grande, mas também não era tão minúscula.
─ Vou matar, Rafa. Com um rodo.
─ Não, deixa aí um tempo, Lena. Ela vai comendo uns insetos.
Naquele dia eu tinha de novo sonhado que eu tinha um filho. Acordar desses sonhos sempre foi muito ruim. A vida linda que eu tenho de repente parece vazia, só porque em sonho eu tinha sentido alguma coisa tão poderosa que acordar no meio do meu quarto e constatar a completa inexistência da criança que eu amei tanto é arrebatadoramente frustrante.
Era domingo e eu voltei pra cama, já que não seria necessário buscar o rodo pra matar a aranha. O Rafael sentiu o meu humor e sumiu dali, foi se enfiar nos papéis dele, na sala. Fiquei olhando a aranha debaixo pra cima e me pareceu o bicho mais solitário do mundo. Eu tinha a apoteose da solidão instalada no meu quarto, em cima de mim.
Fiquei me imaginando com tantas pernas só para andar tão pouco, fazer da minha própria casa uma armadilha às minhas únicas visitas. Devorar em pedaços quem se aproxime de mim. Viver no canto desse quarto sem nada pra dizer, com tantos olhos sem nada que me interesse ver.
É capaz que ponham ovos, não sei, e que cuidem deles um dia, mas não essa. Não essa aranha sucateada nesse arremate de teto, tecendo compulsivamente sua cama em cima da umidade, bem no canto onde o sol nunca chega. Ela que vai ficar aí esquecida uns dias comendo mosquitos insossos até eu pegar o rodo.
Fiquei ali deitada muito tempo pensando em como não ser como ela. Calculei o que seria preciso evitar pra não perceber de repente que eu sou uma aranha imensa e amarga e peçonhenta sugando a energia de qualquer um que se aproxime de mim. O que eu teria de fazer pra nunca estar no canto mais úmido, escuro e escondido da minha vida, toda embaralhada, enforcada na minha própria linha.
─ Você não sai dessa cama, não, Lena? Vai ficar igual à aranha parada na teia. 

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Inverossímil

Tatiana Robles

Os lábios separaram-se, e aqueles olhos abriram-se e fitaram-me pela última vez. Eram de um azul tão intenso como o mar caribenho, em meio àquele deserto povoado por loucuras. Tão límpido que era possível ver toda a sua admirável profundeza. Numa onda tão alta e tão forte, arrebatou-me. Mas, tudo o que lá acontece, lá fica,  para depois ser dissolvido pelas suas inúmeras luzes. E, arrematando o cúmulo do inverossímil, transbordou por meu rosto uma chuva forte bastante para fazer florescer aquele solo árido e abençoar a sorte daquele improvável encontro diante da infinitude do tempo e do espaço.

terça-feira, 6 de outubro de 2015

Veritas

Daniel Frazão

Primeiro, é preciso sacar a rolha da garrafa, libertar o capeta que mora no conteúdo do recipiente e despejá-lo no interior da taça. No momento em que sorvo o mosto com o devido respeito, injeto uma dose de loucura nas minhas artérias e veias e substituo o antigo sangue careta por outro solerte que me inunda a alma.

Aos poucos, meu corpo perde a retidão de outrora e passa a se movimentar como um meneio. Meus braços começam a se escorar pelas paredes. Sigo me escorando entre os cantos chanfrados dos cômodos que vou redescobrindo na minha própria casa. Ao mesmo tempo, me sinto ainda mais vivo, como se este novo sangue fizesse com que minha alma se tornasse puramente instinto e abandonasse qualquer racionalidade.

Ao mesmo tempo em que bebo o vinho tinto, minhas narinas se apropriam do seu perfume e aquela sobreposição de odores acaba por se tornar também um vício. Sinto a delícia na superfície da língua, no céu da boca e vou me inebriando com esse cheiro sinuoso que até se parece com o balanço da mais bela dama.

Sinal fechado

Ivan Nery Cardoso

Com o freio de mão puxado, os motores rugem no sinal, ansiosos para correr, gritar, ranger; reflexo dos motoristas enclausurados, do dia quente, do rádio ligado, dos sovacos molhados. De dentro de um ônibus vermelho, a cabeça de um motorista espia para fora da janela o retrovisor lateral, enquadrando o rosto no reflexo: primeiro o lado direito, depois o esquerdo. Ajeita as sobrancehas grossas com o dedo médio e com um único mindinho alisa a superfície do nariz, analisa a textura da pele, como se à procura de evidências de um cravo ou uma espinha já espremidos. Coloca os óculos e se observa mais atentamente. Olha os dentes, tenta tirar algo com a língua, alisa os cabelos que crescem apenas nas laterais, começa a pentear para os lados os fios espessos do bigode com o polegar e o indicador, mas o ronco das motos e dos carros se acentua, anunciando a iminência do movimento,  do sinal que fica verde. Engata a primeira, abaixa o freio de mão e volta a desaparecer detrás de seu volante.

O Carro, O Telefone, Alessandra e Eu

Bea Elsborg

Senti o telefone vibrar no bolso esquerdo da calça. Enquanto segurava o volante com a mão direita e continuava acelerando, utilizei desajeitadamente a mão esquerda para passar embaixo do cinto de segurança e conseguir tirar o telefone do bolso da minha calça de sarja.

A escuridão da noite atingia o interior do meu carro. A penumbra se interrompeu quando apertei o botão do celular. Um olho no caminho e outro na tela do celular. Uma mão no volante e a outra no celular. Uma mensagem de Whatsapp atravessava a tela com os dizeres “Amor: Vê se hoje você não se atrasa (emoji de coração)”.  Meu coração deu um pulo, sorri, soltei o volante e mudei de marcha. O telefone continuava na mão esquerda que desajeitadamente procurava o bolso da calça. A voz de Alessandra do Waze ressonou no carro: “Em 500 metros, vire a direita”.

Um barulho seco ecoou no interior do automóvel. “Droga!” resmunguei. Deixei o telefone cair. Tirando a vista do caminho, tentei utilizar meu pé esquerdo para chutar o telefone até algum ponto onde conseguisse pegá-lo. O motor ronronava, mudei de marcha, e continuei. “Em 200 metros, vire a direita”

Senti o aparelho bater contra a porta. Continuei de olho no caminho, enquanto me abaixava para recuperá-lo. “Pronto!” Gritei enquanto segurava o telefone na mão esquerda. “Em 100 metros, vire a direita”. Justo no momento em que um carro vermelho se incorporava na minha faixa, tentei parar, volante à direita, buzinei. O som de pneus, buzinas e lâmina de auto se espalharam pela Marginal Pinheiros.

“Em 500 metros, vire a esquerda para retorno”.

“Droga! Vou me atrasar de novo” repeti para mim mesma. 

domingo, 4 de outubro de 2015

Transformação

Michelle Potapovas Conte

Nunca sou a mesma
Sei que ao findar estas linhas,
Terei mudado.

Ora sou vaga,
Vivo vagando, viajando, sonhando
Como um pássaro breve e leve

Ora sou astuta,
Faço o que devo fazer,
Doa a quem doer

Os meus sentimentos mudam
Constantemente movem-se
Transformam-se
Apenas uma coisa é imutável
O meu amor.


Pressa

Michelle Potapovas Conte

Avisto a multidão marchando
Coração na boca, boca secando
Todos tão mecânicos...

Agora o ponteiro se anuncia
Suplicam pelo dia da alforria

Esquecem sua essência em algum lugar
Todos têm o mesmo sonho
Um dia deixar de vagar.

Imagem: Estação de Trem - Sebastião Salgado

sábado, 3 de outubro de 2015

Criança perdida

Zulmira Carvalheiro

Manhã bem cedinho. Andando rápido pela Rua Direita.
Rápido rápido quase correndo na direção da Praça do Patriarca.
“Não posso perder o ônibus fretado. Não tenho dinheiro para táxi. Ônibus comum vai me atrasar. Sem chance. Tô na experiência, se atrasar já era.”
Depressa, mais depressa!
E lá ia quase correndo.
Cruzando o Largo da Misericórdia, uma mulher estacou alguns metros à sua frente. Virou-se, atarantada, olhou ao redor e gritou: “Pedro! Pedro!”
Dava pra perceber: era caso de criança perdida.
Não se via nenhuma criança por ali. Onde raios estaria o menino?
A mulher passou a gritar mais alto, em tom mais desesperado: “Pedro! Pedro!”
Mas que droga de mãe era aquela que não segurava a mão do filho ao andar pela Rua Direita?
E agora? Não podia parar, sob pena de perder o ônibus fretado.
Tanta gente na rua, alguém na certa ajudaria.
Apertou o passo a fim de compensar os segundos perdidos na hesitação.
Os gritos ficaram para trás. 
“Pedro! Pedro!”

Alice e Elizabeth

Zulmira Carvalheiro

Duas irmãzinhas.
Uma loira de seis anos, outra ruiva de cinco.
Vestiram roupas de festa. Calçaram sapatos de fivelas douradas.
Cabelos bem penteados, posaram para o retrato.
Em pé, de mãos dadas, já estão ali há muito tempo.
Que cansaço!
A mais velha tem jeito de princesinha. Ligeiro sorriso mostrando os alvos dentinhos, ela não perde o foco, quer sair bonita na pintura. Os cabelos espalhados em torno do ombro esquerdo: ouro sobre azul.
A pequena, essa tem vontade de ir embora.
Ainda vai demorar muito?
Fique quieta, menina. Espere só mais um pouquinho.
Apoia a mão na faixa de seda rosa da cintura. Um muxoxo gracioso na boca fechada.
Não chore, pequenina. Já já você vai descansar. 

Pintura

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

31 de dezembro

Tatiana Robles

A folha do calendário finalmente vira
De novo, na cobertura, todos reunidos
Esperanças e sonhos que se renovam
Em meio a champagne, abraços e risos
Abafados apenas pelos fogos de artifício
A estourarem no céu

Olho para o chão
E os garis continuam lá recolhendo o lixo
Tudo igual, noite qualquer
Subindo e descendo do caminhão
Tento imaginá-los como os coletores dos sonhos desfeitos
Durante aquele ano que passou
Mas não...
Para alguns, a folha do calendário nunca vira



There is no place like home/There is no place like hope

Tatiana Robles

Descortinado por um mastro de nuvens escuras
Surge o palco de misérias e amarguras
Onde são compelidos a permanecerem confinados
Os que pela ignorância humana foram exilados

Incerta vida... sobrevida
Daqueles que lutam para encontrar uma via
De sua identidade ser mantida
Mesmo vivendo à penumbra do que fora um dia

Campo seco, de tanta dor, rachado
Ainda que chova ou seja a lágrimas regado
E por cordões da intolerância limitado
E das fronteiras do egoísmo aproximado

Mas em claros raios como os da aurora
Vem a esperança o céu timidamente cruzando
E aos que continuam, em meio ao pesadelo, sonhando
Vai prenunciando o retorno à vida de outrora