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segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Serelepe

Daniel Frazão

O trombadinha atravessou a avenida na faixa de pedestres, todo serelepe, com as mãos prestes a mais um assalto. Parecia um saci sem cachimbo na boca ou perna amputada. Tinha apenas um cachecol vermelho para proteger o pescoço do frio daquela manhã de terça-feira, uma roupa suja no corpo e um sorriso na cara como se seu ilícito fosse quase uma dádiva.

Acompanhei tudo pelo para-brisas, parado no farol a poucos metros da cena. O saci se aproximou de um táxi e interpelou o taxista com uma risada e um chiste antes de mostrar o canivete que guardava sob o elástico de uma calça de moletom desbotada. Pediu toda a féria que o motorista acumulara entre o final da madrugada e o início da manhã.

O taxista, por um momento, hesitou em dar o dinheiro, com a esperança de que o farol verde pudesse salvá-lo, assim como a coragem de dar um cavalo de pau com o carro e deixar o trombadinha falando sozinho. Mas o saci talvez tivesse dons que só conhecíamos nas histórias que nossas avós contavam e parecia até controlar as fases do semáforo, como um guarda da CET.

Cientes ou não do que ocorria a poucos metros de seus respectivos narizes, os outros motoristas buzinavam, mais em protesto pela demora do farol do que pelo cu doce do taxista ou pela insolência do meliante. Eu, ao contrário dos outros, observava o assalto com toda a paciência. Torcia para que o bandido se desse bem.

Eu tinha acordado de ovo virado e queria que o resto do mundo se fodesse – e isso incluía o taxista que eu sequer conhecia. Além disso, a bem-aventurança do assalto seria uma vitória do trombadinha em sua causa: roubar dos outros em beneficio próprio, sem distinção de raça, credo, sexo ou filiação política. E sempre admirei esse tipo de engajamento.

Tive dó do taxista por alguns instantes, não vou negar, pela hipótese de perder tanto dinheiro num estalar de dedos, mas logo me conformei e percebi que essas coisas fazem parte da vida e que eu poderia ter dado a falta de sorte de estar em seu lugar de vítima. Bastava ter parado o carro um pouco mais à frente, na primeira fileira depois da faixa de pedestres.

A hesitação do taxista, por sua vez, poderia ter feito o saci meter os pés pelas mãos e cumprir a ameaça que existia na lâmina do canivete. Em uma situação comum, a polícia poderia chegar a qualquer momento para interromper o crime e colocar o meliante como um bicho no camburão. Mas apesar de corriqueira, aquela não era uma situação comum. O trombadinha parecia deter o tempo com um feitiço.

E como num passe de mágica, o taxista enfim resolveu se desfazer da grana. Tirou um bolo de dinheiro não se sabe de onde e o entregou ao trombadinha enquanto os carros da avenida transversal insistiam em passar de forma ininterrupta à sua frente. Ávido diante daquele tesouro, em notas gordas, médias e magras, o saci abriu um leque com as cédulas em suas mãos céleres, com dotes de crupiê.

Ao completar o assalto, o trombadinha voltou a correr no sentido oposto de onde viera e se escafedeu em alguma rua por dentro do bairro. O taxista respirou fundo com um sentimento de redenção por sair vivo, o farol abriu e ele acelerou em busca de outros passageiros que o ajudassem a, pelo menos, diminuir o prejuízo com o roubo. E eu continuei o caminho para o trabalho, enfrentando o mau humor e a barbeiragem alheia.

terça-feira, 10 de novembro de 2015

Skyline Pigeon

Zulmira Carvalheiro

              Há algumas coisas nesta vida que não entendo.
Vivo aqui nesta casa desde sempre, todos me tratam bem, me trazem brinquedos, brincam comigo e contam histórias. Mas sou proibida de passear sozinha. Há sempre alguém segurando a minha mão quando estamos lá fora. Não posso nem correr atrás das pombinhas, nem subir em árvores, nem nada. Apanhar flores e catar pedrinhas com as duas mãos também é impossível.
Uma noite, quando todos estavam dormindo, tentei sair por uma das janelas. Então percebi: todas têm grades de ferro.
Uma única vez fomos até o limite do jardim, isso depois de eu pedir muito. Só concordaram quando perceberam lágrimas nos meus olhos. Fiquei admirada com a altura do muro. "Para que um muro tão alto?" perguntei. Nenhuma resposta.
Há algum tempo comecei a ter vontade de sair daqui. Eles afirmam que nada existe para além do jardim, mas acho difícil acreditar.
Hoje tentei largar a mão do meu acompanhante. Ele percebeu na hora e segurou mais forte ainda, chegou a doer. Voltamos logo para dentro.
Quando eu era mais jovem não pensava nessas coisas, porém agora vivo atormentada por dúvidas e curiosidades que nunca são esclarecidas.
              Meu desejo é voar para longe daqui. Se pudesse iria agora mesmo. Isso me lembra um dos grandes mistérios que me cercam: por que as outras pessoas não têm asas?

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Água Parada

Ivan Nery Cardoso

Engata a primeira. Abaixa o freio. Anda. Para. Puxa o freio.

O céu é de um azul imaculado, imenso, impiedoso. Não chove há semanas, e a secura já se percebe nos lábios rachados pela cidade, um grave incômodo. O ar parece de um amarelo sujo, esconde o perfil dos prédios mais distantes. O sol, lá em cima, brilha um pouco demais, tornando o dia quente -muito quente- e isso significa uma coisa apenas: o rio, que corta a cidade em duas fatias desiguais, vai estar cheirando mais do que o normal. As águas paradas de seu curso artificialmente retilíneo fervem sob o calor abrasante, exalando um refinado aroma pungente que atravessa as barreiras físicas dos vidros escuros, vence as atmosferas postiças de gleid autoesporte e se faz sentido pelas muitas narinas que já o conhecem bem: carniça fermentada, com notas de enxofre.

Engata a primeira. Abaixa o freio. Anda. Para. Puxa o freio.

Filha da puta, sacana de merda! Vai fechar a puta que te pariu! Tá querendo o que entrando assim, porra? Ô seu bosta, enfia essa buzina no teu cu, caralho! Não tá vendo que essa merda não tá andando pra ninguém, escroto? Tá achando que essa caceta vai fazer meu carro voar? Ah, te foder! Calor do caralho! Olha aí, já tô todo cagado de suor!

Engata a primeira. Abaixa o freio. Anda. Para. Puxa o freio.

As motos passam despreocupadas nos corredores vazios, desviando dos retrovisores emparelhados, os rostos escondidos por capacetes. Os ônibus resfolegam como grandes paquidermes, movem-se pesados, a passos curtos. Nas traseiras dos carros, mensagens aos colegas estacionários: “Tá estressado? Vá surfar”, diz o Corsa sedan. “Foi deus quem me deu”, se orgulha o Gol 1.4. “Me lave”, clama o encardido Celta branco na poeira que o limpador de parabrisas não alcança. Uma família adesiva sorri a todos: mãe, pai, dois filhos e um cachorro, nenhum deles afetado pelo estresse. Devem ser surfistas.

Engata a primeira. Abaixa o freio. Anda. Para. Puxa o freio.

Devia deixar um desodorante no carro, talvez no porta-luvas, é só tirar os cds de lá, colocar num daqueles estojos que cabem uns 50, aí dá pra deixar na porta, fica até mais fácil de pegar, será que ainda vendem esses estojos, ninguém usa cd mais, caramba, que música chata, não tem nada de bom no rádio a essa hora, vontade de ouvir Lou Reed, cadê o cd, cadê, cadê, achei bob marley, faz tempo que não escuto, old pirates, yes they rob I, sold I to the merchant ship, será que passa barco no rio hoje em dia, quer dizer, além dos que tentam limpar essa água podre, cheia de lixo, espuma flutuando, olha lá quanta garrafa de plástico boiando, como é que meu avô conseguia nadar aí quando era jovem, bom, naquela época o rio era outro, a água era limpa, tinha margem natural, tinha árvore, não tinha essas avenidas, quem veio primeiro, a avenida ou a poluição?

Engata a primeira. Abaixa o freio. Anda. Para. Puxa o freio.

Os motores tremem, ansiosos para correr, gritar, ranger; reflexo desses motoristas enclausurados, do rádio ligado, dos sovacos molhados. De dentro de um ônibus vermelho, a cabeça de um motorista espia para fora da janela o retrovisor lateral, enquadrando o rosto no reflexo: primeiro o lado direito, depois o esquerdo. Ajeita as sobrancelhas grossas com o dedo médio e com um único mindinho alisa a superfície do nariz, analisa a textura da pele, como se à procura de evidências de um cravo ou uma espinha já espremidos. Coloca os óculos seguros por um cordão no pescoço e se observa mais atentamente. Olha os dentes, tenta tirar algo com a língua, alisa os cabelos que crescem apenas nas laterais, começa a pentear para os lados os fios espessos do bigode com o polegar e o indicador, mas o ronco das motos e dos carros se acentua mais uma vez, anunciando a iminência do movimento, o trânsito que anda.

Engata a primeira, abaixa o freio, e volta a desaparecer detrás de seu volante.

Casa de Espelhos

Ivan Nery Cardoso

À direita o Biólogo me observa,
a barba negra coçando,
escrutinando o estranho símio
que do outro lado o imita.

À esquerda o Escritor me contempla:
rapaz alto, olhos baixos, cabelos curtos.
Dançando a caneta no caderno,
toma notas para um conto.

Às minhas costas uma Criança, tímida,
por cima dos ombros me espia.
Mão na mãe segura, segura.
Tem medo, ainda não me conhece.

À minha frente me olha um Adulto nos olhos:
Sério, responsável, maduro.
Tenta entender onde veio parar
e o que significam tais palavras.

Por trás de cada um enxergo
mais um e mais um e mais outro ainda.
Cada um, uma parte do todo que
os pergunta de volta: quem sou eu?

Fotógrafo na estação

Ivan Nery Cardoso

Mil e tantas cabeças,
mil e tantas camisas,
mil e tantas calças,
mil e tantos umbigos.
Dois mil e tantos olhos,
dois mil e tantos pés,
duas mil e tantas narinas,
duas mil e tantas mãos.
Sete mil e tantos botões,
dez mil e tantos dedos,
vinte mil e tantos se contarmos os
dois mil e tantos pés.
Setenta mil e tantas batidas por minuto.
Duzentos mil e tantos ossos.
Um milhão e tantos fios de cabelo.
Vinte e cinco trilhões e tantos neurônios.
E apenas uma cabeça, uma camisa,
uma calça, um umbigo,
dois olhos, dois pés,
duas narinas, duas mãos,
sete botões, vinte dedos,
setenta batidas por minuto,
duzentos ossos, mil fios de cabelo
e vinte e cinco bilhões de neurônios,
pararam para observar
essas mil e tantas vidas
que estão a passar.

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Autorretrato

Auler José Matias

Exposição perfeita,
Ilumina em flash certeiro,
Imagem fugaz, rarefeita,
Foto do eu verdadeiro.

Opaca, difusa
Em abertura que não se usa
Clicada na exata distância  
Captura apenas a fragrância,
Da face oculta,
Em resolução que não resulta.

Negativo revelado revela, reveladora
Imagem sedutora
Da esfinge
Que engana e finge
Ser um ou outro
Ou vários ou poucos
Nem neste, nem noutro,
O “baguio” é muito louco.

Não me sei, não me encontro,
Só sei que ainda não estou pronto
Para o post final,
Em rede social,
Digitalizado, sine qua non,

Nas lentes da câmera Cânon.

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Fim de Tarde

Alessandra Correa

Sem precisar olhar o relógio, percebi que o dia estava terminando. Logo o sol se poria, e chegaria a hora de os levar para casa. E a costumeira cena se daria: carregaria a pequena no colo, sonolenta, cabelos sob o rosto. Já Pedro, passaria pela porta correndo, cheio de areia e histórias, com uma energia que sempre me deixava surpreso. Quando estivesse lá dentro, me daria um tchau, gritado, quase esquecido. E então, eu voltaria para o carro. Sozinho.

Mas ainda tínhamos algum tempo. E assim, mascarei o que me apavorava e fiquei ali, sentado, apenas os observando brincar.
Eles não tinham pressa. Não pensavam no depois. Não se preocupavam. Apenas estavam ali. Correndo pela orla, empurrando um ao outro, molhando os pés na água gelada, acenando de vez em quando.

De onde estava, podia ouvir os gritinhos e risadas, misturados ao quebrar das ondas. Mas não conseguia enxergá-los claramente. Nem era preciso. Sabia que estavam com as faces coradas, olhos brilhando, coração leve. Naquele momento, isso era tudo o que eu tinha. Um fim de tarde. Tudo o que me bastava.

Cena de foco aberto

Mariana Salomão Carrara

Quando permito que os delírios dela provoquem sigilosos princípios de conjecturas em mim, fica a imagem absurda: eu com parafernálias de bebê, e um bebê, chegando de volta da maternidade ao apartamentinho avermelhado e infestado de poeira, figurinos, uísques e artistas – rapidamente substituídos e afastados por parentes cheios de autoridade –, um bebê ali parado embrulhado no meu braço, num dia totalmente irreversível como nenhum outro, o bebê reordenando as prioridades e subitamente transformando qualquer vocação ou arte em supérfluo, o bebê no braço pesando cada vez mais, até que não caiba no berço, nem caiba na minha vida, onde nunca de fato teria cabido, uma pessoa que eu teria posto no mundo e que pouco a pouco poderia fazer cada vez menos sentido. Alguém, na pior das hipóteses um homem, que nada tem a ver comigo e de quem eu não posso me separar jamais. Um outro homem que talvez por freudialidades revoltantes tenha se formado ao avesso de mim e se sente à minha mesa com a barba  impecável exercendo suas boçalidades tipicamente masculinas, repletas de uma heterossexualidade das mais triviais, apresentando mulheres conformadas e plácidas com quem o meu convívio começa a ser permanente. Circularia em casal pela minha sala exercendo sua jovialidade plástica, exibindo músculos que eu nunca tive, julgando-se ele próprio o retrato de uma nostalgia que eu terminantemente não teria. Tentativas inócuas de me magoar com a minha velhice enquanto na verdade me enoja com a sua juventude de banalidades, escancarando ao mundo que não pode haver nada de especial em mim se o que eu pude gerar é um cuspe amorfo da mediocridade, ele ali feito um espelho eterno que eu passaria a vida tentando negar. 

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

No Quarto

Michelle Potapovas Conte 

Aquele cubículo escuro e abafado, banhado apenas pela luz laranja do abajur de pedra em cima de mesinha, a garota mais indefinível do mundo está a escrever e refletir, sobre a vida, os planetas, as profissões e principalmente, as dúvidas mais estranhas que alguém pode ter a respeito de nossa existência na Terra. Ajeita o lápis na mão novamente e continua a escrita lenta e pesada. E em meio a tantas cobranças e questionamentos, ela mais uma vez nessa semana se sente presa em seu próprio quarto, não apenas por ele ser minúsculo, mas por se sentir presa também a um corpo que não lhe corresponde. Ela deixa o caderno e o lápis sobre a cama onde estava sentada e levanta-se, abre a janela em busca de ajuda, para que um pouco de ar possa inundar aquele aperto dentro do quarto e dentro do peito. 

Missão Espacial: Exoplaneta

Zulmira Carvalheiro
         


           Aqui vou eu, caminhando sem rumo pela superfície mais inóspita do universo conhecido. Saí sozinha a fim de contemplar essa aurora boreal amarela, prova de que o núcleo do planeta continua ativo. Aí está a magnestosfera para protegê-lo. Muito fraca, porém. A incidência de raios cósmicos é intensa. Ambiente perigoso para a vida humana. Por que fui me afastar da base? Nem percebi o quanto me afastava. Todos aqueles anos de capacitação e agora quebro o procedimento mais elementar de segurança. Se me perder nem saberão onde me encontrar porque esqueci o anel localizador no alojamento. O que acontece comigo, a funcionária padrão do projeto? 
          Se me deitar aqui, ao lado dessa rocha e ficar bem quieta... O oxigênio dos cilindros se esgotando lentamente... Meu sistema saturando-se com dióxido de carbono... vou ficar com sono, vou dormir...  
          Foco! Foco! Qual o motivo dessa cor na aurora boreal? Átomos de sódio na ionosfera? O solo é vermelho de ferrugem, como em Marte. Mas o brilho amarelo no horizonte me lembra luz de sódio. Preciso perguntar a alguém quando voltar à base. Não posso demorar. Tanta aridez me deprime. Um planeta inteiro sem vida vegetal. Nenhuma árvore, nenhuma flor. 
          Um planeta sem flor deve morrer mesmo. Merece ser vaporizado por uma estrela em explosão. De que vale a vida sem flores? Mesmo as insignificantes, como aquelas violetas pequeninas que se abrem escondidas no meio da folhagem. Uma única flor que houvesse aqui justificaria a permanência do planeta. Mas não há. Que se aniquile junto com sua estrela agonizante. Nada a lamentar.

* * *

(Este é um trecho adaptado do conto "Exobacterjulian".)